O Marinheiro - texto, palavra, música
Antônio Jardim
Para Nanci, Gleice, Lícia e Natasha.
Acabamos de assistir a um espetáculo tão belo quanto intrigante. Um espetáculo que tem três atrizes em cena. Três jovens e talentosas atrizes. Uma direção firme e criativa, um cenário simples e intenso. Assistimos a uma peça teatral que possivelmente cumpre o destino de fazer-se memória em quantos a tenham assistido. Sua originalidade reside em alguns fatores que se fazem mostrar como relevantes, segundo o modo como o espetáculo se realizou propriamente em sua relação com o modo como ele se faz apropriar.
Entende-se que esse espetáculo tem personagens:
E parecia-me que vós, e a vossa voz, e o sentido do que dizíeis eram três entes diferentes, como três criaturas que falam e andam.
Quem é a quinta pessoa neste quarto que estende o braço e nos interrompe sempre que vamos a sentir?
Entende-se ainda que a peça tem um lugar, isto é, um espaço- tempo:
De eterno e belo há apenas o sonho...
E tem um protagonista. Este último seria, dentre todos os elementos, o mais
importante e decisivo.
As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão logoao passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas e fatais...
O protagonismo pertence ao texto, o texto marinheiro, o texto esse ἀργός que constitui um nauta, esse argonauta. Ele, o texto, estabelece a primeira e principal tensão posta, exigida e pronunciada.
O que seria protagonismo, o protagonista? A palavra protagonista nos chega pelo idioma grego ἀγόν que se diz do embate, do combate, da tensão e προτοῦ que se deu anteriormente. Assim, o protagonista é o que se estabelece enquanto tensão anterior, embate primeiro, combate inaugural. É, portanto, a primeira e decisiva dificuldade. A dificuldade com que o dramaturgo, neste caso, o poeta, precisa se defrontar – a palavra. A palavra como experiência, isto é, como superação de seu limite, do limite que enquanto palavra traz consigo. Palavra diz-se desde o grego πάρα βάλλω, que diz lançar-se para e que chega ao português desde parábola até que por fim palavra.
Pessoa diz através de sua personagem:
As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão logo ao passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas e fatais...
Perfazem-se tempo e fazem-se espaço, portanto.
Com nossas concepções mais precipitadas de tempo e espaço pensamos entender com rapidez que as palavras ocupam um lugar no tempo, afinal... Mas espaço?... Em verdade, esse dizer das palavras põe-se como temporalidade-espacialidade a cada vez que uma palavra é pronunciada. Sua pro-núncia, nos coloca diante, no texto de Pessoa especialmente, de sua dimensão corpórea, isto é, sua sonoridade e sua ritmicidade, desde a qual espaço e tempo são criados.
N’O Marinheiro não temos só uma palavra, temos a ação dramática, significa, temos uma música inteira. A música principal do texto é o próprio texto. A musicalidade inaugural de um espaço-temporalidade, a música protagonista, a música do embate inaugural, primeiro, principal. Espaço-tempo? - alguns se perguntarão. Sim, espaço-tempo criado a cada enunciação do texto e necessariamente de cada palavra neste. Sim, se há uma música, há espaço-tempo. Não enquanto algo que ocupe lugar, mas algo que cria um lugar, um espaço-tempo, cria uma teatralidade inaugural, primeira. Teatro diz ver o que se põe, no lugar propício, propiciador. Não num espaço e tempo entendidos enquanto a priori, mas como in-stâncias, presenças inequivocamente inseparáveis e conjugadas aos fenômenos e como fenômenos se apresentam. Lugar como conjunção, conjugação espaço-temporal. Música põe-se como uma conjunção espaço-temporal. O teatro nesta obra de Fernando Pessoa é inseparável de sua música, de sua musicalidade. Sua música é o que nos convoca, nos chama para fazermos essa experiência, essa superação de nossos limites. Se não ouvimos essa música primeira, não tem peça, não tem teatro, não tem nada. Ouvir Pessoa é o que viemos fazer aqui, ouvir como sua poesia, seu fazer, sua música, é ouvir a sua con-vocação para este espetáculo. Sua música nos chama. Se atendermos esse apelo, haverá cena, cenário, movimento, cor, luz, música pro-posta, pós-posta.
Pessoa nos inquere, sempre por uma de suas personagens falantes:
Quem é a quinta pessoa neste quarto que estende o braço e nos interrompe sempre que vamos a sentir?
Quem haveria de ser? Quem ousaria responder? Quem poderia responder. Se perguntamos quem, dirigimos mal a questão. Não é um quem, é um que, que se põe como res-posta. Essa coisa que SE põe é a música. Não a música, musicalmente utilizada neste espetáculo, não, não é a essa que se está referindo. Trata-se da música instaurada previamente pelo próprio poeta. A música da palavra.
Neste espetáculo toda vez que perguntarmos por um quem, queremos saber sempre o que. Assim a pergunta - quem é o marinheiro? É outra vez imprópria. O marinheiro em questão não é um quem, ele é o argonauta do qual nos fala o lema – Navegar é preciso, viver não é preciso – onde a precisão das realizações se tensiona com a imprecisão da vida, do real posto em possibilidade. O real em possibilidade é realidade. O nauta é possibilidade tornada realidade pelo sonho, tema este posteriormente tratado também por Jorge Luís Borges como, por exemplo, em As ruínas circulares. Neste O Marinheiro, o vigor do sonhado realiza-se, põe-se como um viver impreciso, mas decisivo. O marinheiro constrói-se, constitui-se como o sonhado necessário que se articula tensionalmente como a possibilidade que atravessa a morte, a vida - que sabemos nós? O marinheiro é a luz que brilha no distante divisado pela janela. O marinheiro é o próprio tecido, o próprio texto a própria tessitura tramática e dramática trazida desde sua musicalidade, de sua música-poema.