Selfie Atônita
Por: Nanci de Freitas
O filósofo coreano, Bung-Chul Han, em entrevista ao jornal El País, publicada em 23/03/2021, diz sobre o esgotamento que vivemos no confinamento da pandemia:
Antes da pandemia, já havia a presença massiva na internet de registros do cotidiano: onde se vai almoçar aos domingos e o que se come, quem anda rodeado de amigos e para onde se viaja nas férias. Acompanhamos as trajetórias pessoais: das barrigas ao nascimento dos filhos, às comemorações de aniversário, festas de 15 anos, bodas de prata. Formaturas e defesas de teses. É preciso registrar e dar visibilidade.
Com a pandemia, a presença nas redes sociais se intensifica. Isolados em casa, acompanhamos as imagens dos que podem se retirar para o campo, para as montanhas, praias paradisíacas, banhos de cachoeira. Parecem felizes. Quando saio à rua, percebo a indigência e as desigualdades em lentes de aumento. Impotência.
Todos agora fazemos lives. Finalmente, alcançamos os 15 minutos de fama, como previu Andy Warhol. São 15 minutos que se desdobram, se ampliam ao infinito. Todos querem dizer o que pensam. Todos se mostram preparados para opinar sobre todos os assuntos, expor o que conhecem, suas áreas de atuação, vender seus produtos. Todos querem dizer quem são. Voltamos aos arquivos de fotos, fazemos a revisão das trajetórias profissionais e artísticas. Mostramos as habilidades corporais, musicais, falamos poemas, indicamos receitas, tornamo-nos youtubers.
Percebi que as postagens de minhas “tentativas live” eram um desejo de dizer algo ao “mundo da minha bolha”, uma busca desesperada de contato. “Oi, estou aqui”. Muitos responderam ao aceno. As tentativas se esgotaram e eu precisava continuar acenando. Começo uma busca desesperada de mim mesma: “Quem eu sou de fato? Quantos amigos eu tenho? Eu pertenço a que? A que lugares, comunidades, crenças, pensamento político? Eu sou artista?”.
Me pego fazendo pequenas cenas irônicas que vão construindo um self-portrait. Por minha cabeça passam fragmentos de poemas que começam com “eu sou”. Vou lendo, vou filmando, vou colando essas imagens que me acompanham há tanto tempo e que se renovam, ganham novos sentidos na dor e perplexidade do agora. Divirto-me à beça. Vou montando um vídeo-selfie, uma cena que se desdobra, sempre no mesmo cenário, onde me entrelaço com meus eus e outros eus, também atônitos: Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Fernando Pessoa, Emily Dickinson, Carlos Drummond de Andrade. Eu sou o que me atravessa. Eu sou o que me faz sentir viva.
Também nos esgotamos com as lives permanentes, que nos transformam em videozumbis. Acima de tudo, elas nos obrigam a nos olharmos o tempo todo no espelho. É cansativo contemplar a própria cara na tela, estamos o tempo todo diante de nossa própria cara. Não deixa de ser uma ironia que o vírus tenha surgido justamente na época das selfies, que se explicam, sobretudo, por esse narcisismo que se espalha pela nossa sociedade. O vírus potencializa o narcisismo. Durante a pandemia todo mundo se confronta, sobretudo, com a própria cara. Diante da tela fazemos uma espécie de selfie permanente.