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Anima Monstro: corpo, alteridade e performance
na contemporaneidade.
Thiago José Bastos de Siqueira, Mestrado, 2019

Anima Monstro é uma pesquisa que investiga os limites e contaminações entre a performance e o teatro contemporâneo, explorando os conceitos de teatralidade e performatividade desenvolvidos por Josette Féral. Fruto de uma necessidade pessoal de reclamar certa autonomia de meu próprio desenvolvimento artístico enquanto figurinista, o projeto se debruça sobre as camadas simbólicas imateriais da indumentária, revelando diferentes formas de entender o que é o vestir e como elas afetam o corpo, por meio da ação poética. Anima Monstro conjuga simultaneamente teoria e prática, relatando a experiência de criação, produção e apresentação de duas performances artísticas, cujas características limítrofes se apoiam sobre os hibridismos de linguagens da cena contemporânea. Como inspiração temática paras as performances foram utilizados os personagens marginalizados conhecidos como monstros. As silhuetas de Minotauro e Frankenstein são reformuladas em performances homônimas, que propõem atualizações e reflexões sobre arquétipos e outras questões que se impõem ao corpo, no contexto contemporâneo, regido pela biopolítica. 

 

Minotauro – margem, silhueta e sombra. 

 

A obra Minotaure de Man Ray foi o ponto de partida para a criação de minha performance Minotauro. A enigmática e instigante fotografia de um torso feminino simulando a cabeça de um touro me remete diretamente ao objeto de desejo sexual, domínio da besta existente em cada um de nós. Nesse caso um desejo anônimo, representado por um torso decapitado. Não importa quem é essa mulher, apenas seu corpo e o impulso que ele desperta, na vontade de devorá-la. 

Eu reconheço essa forma de representação do corpo, ela é facilmente encontrada no cotidiano contemporâneo, em perfis de aplicativos de encontros e redes sociais, destinados ao público homossexual. Estes perfis apresentam poucas e pontuais informações sobre seus donos, mas raramente deixam de conter uma fotografia, na maioria das vezes, um torso masculino desnudo e sem rosto. Os aplicativos tem a interface de menus digitais, lembrando displays de lojas de fast food, onde se escolhe o que consumir pela foto. Outra fácil conclusão, diante da enxurrada de peitorais estufados e abdomens definidos, diz respeito ao padrão físico celebrado e perseguido por grande parte da comunidade gay. Ainda nos dias de hoje, a imagem mais desejada é a que performa certa virilidade, traduzida por meio de um corpo atlético, esculpido para dar e receber prazer, como uma fórmula para a satisfação sexual. Esse modo de apresentação de um corpo fragmentado e a atmosfera sexual que o cerca remetem a algumas obras de artistas surrealistas, fazendo-me pensar se não estamos, como eles, imersos em um cenário de profundo desencantamento social, que incita alguns a uma compulsiva procura por gozo instantâneo, na contemporaneidade. 

Partindo desse cenário, a performance Minotauro problematiza minha própria relação com meu corpo e com a projeção do desejo. Utilizo imagens que contribuem para a manutenção de meu comportamento como autocrítica, a fim de desconstruir uma noção de corpo objetificado, por meio da ação poética. Para tanto, meu corpo despido executa um vestir metafórico de formas e imagens, sobrepondo camadas simbólicas no decorrer da experiência performática. 

A inspiração para a construção da ação vem dos espetáculos do belga Jan Fabre. Suas montagens teatrais são colagens que agrupam textos clássicos, mitos, cinema, dança e artes visuais. Fabre lança mão de projeções e diversos tipos de soluções técnicas contemporâneas para preencher a cena em diversos níveis sensoriais, como nas propostas de Artaud. O resultado é uma enxurrada de signos a serem decodificados pelo espectador. Estes aspectos caóticos também podem ser encontrados na imprecisão dos corpos cansados dos atores, que repetem cenas e ações até o esgotamento, uma opção estética que parece remeter a uma das questões teatrais essenciais: a preciosidade do instante diante da impossibilidade de uma repetição fiel.

 

A performance Minotauro é estruturada entre linguagens. Um enquadramento é delimitado, iluminação é preparada, projetor ligado. Há um personagem, mas não há interpretação, apenas ação que se desenrola como ginástica. Uma performance que denuncia as tensões produzidas pela manutenção da hegemonia do belo, uma operação política secular excludente que serviu de base para a padronização de corpos-mídias na sociedade de consumo. Esses corpos virtuais, inatingíveis, desprovidos de poros e sem marcas da ação do tempo, dominam o imaginário de uma massa de cidadãos e alimentam o descontentamento com seus corpos reais, facilitando o surgimento de compulsões de diversas ordens. 

Segundo o filósofo Peter Pál Pelbart, um deslocamento de foco se evidencia há algumas décadas, e por meio dele a intimidade psíquica teria sido substituída pelo corpo. Corpo que passa a ser confundido com o próprio eu e que é apresentado como uma síntese reduzida da subjetividade. Neste cenário tudo sobre o corpo passa a receber um superinvestimento: “sua aparência, a sua imagem, a sua performance, a sua saúde, a sua longevidade” (Pelbart, 2007, p. 60), a fim de produzir uma espécie de ascese, ora cientifica, quando tentamos nos enquadrar nas regras da saúde, ora estética, seguindo as normas da cultura do espetáculo. Uma obsessão pela perfeição física, que tem como aliada diversas formas de transformação do corpo disponíveis na contemporaneidade. Essa tirania de subordinação voluntária estaria ligada a uma ideia de gozo sensorial imediatista com um alto custo em sofrimento. 

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