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Sintaxe de sensações: O Marinheiro em cena

José Da Costa

     Que alegria assistir à encenação do poema dramático O Marinheiro, de Fernando Pessoa, sob a direção de Nanci Freitas, em uma realização do Projeto Mirateatro, do Instituto de Artes da UERJ!

     A cenografia envolvendo completamente as atrizes em um ambiente interior, cujas paredes são de um leve tule branco transparente, garante tanto a segregação das personagens em relação à vida cotidiana e ao mundo no qual os espectadores se encontram, quanto também a porosidade, ou seja, a transitividade entre a ficção e a vida supostamente real, entre o sonho e o mundo social efetivo. O tule e a redoma que ele forma encerram e, ao mesmo tempo, abrem o âmbito do imaginário e do simbólico em que se encontram os corpos e as vozes das atrizes e de suas personagens. Fazem com que os influxos do sonho possam atingir com mais força os espectadores, que trazem, entretanto, as marcas do contexto e da vida histórica em que estão mergulhados e que são tão distintas do âmbito onírico da cena. Por mais metafísicas que sejam as considerações sobre a vida, o sonho, as palavras, a voz e o sentido da linguagem verbal, elas reverberam sobre nós, espectadores, com peso de grande concretude e a força de uma experiência vital. Nosso sentimento, nossas sensações e nossa memória de perdas, reinvenções, perplexidades e vazio também se despertam e se mesclam sob a influência das palavras e vozes noturnas e possivelmente sonolentas das três mulheres em cena.

     O trabalho das atrizes chama a atenção pela concentração e pela densidade com que lidam com o texto de Pessoa, mesmo sendo visivelmente tão jovens e trajando figurinos tão distanciados do tipo de roupas que utilizam provavelmente em seu cotidiano. A economia dos gestos, a precisão do olhar e a parcimônia dos deslocamentos corporais também se distanciam completamente de tudo o que podemos supor que possam ser os modos habituais de aquelas jovens artistas se comportarem nas suas vidas diárias, em um centro urbano como o Rio de Janeiro, no tempo presente. Todo o arcabouço da atuação cênica representa um grande número de desafios para as intérpretes que, porém, logram lidar tão belamente com os critérios da contenção propostos pela forte direção de Nanci Freitas, sem perderem, certa naturalidade, em sua postura predominantemente hierática.

     O encerramento e a contenção se distendem, de certo modo, por meio dos vídeos projetados que abrem janelas de respiração novas para o espectador, trazendo imagens de paisagens naturais, fluxos de água e de uma luminosidade intensa de que a noite e a penumbra da situação cênica são a completa contraposição. A sintaxe do encerramento e da abertura que transparece em toda a proposição cênica se complementa pelas músicas e pela sonoridade cuidadosa e sugestiva para os sonhos, sensações e fluxos que se produzem em nós a partir da cena que testemunhamos. Torço para que um trabalho de pesquisa artística produzida no campo universitário como esse de O Marinheiro possa ser mostrado para um número maior de espectadores.

José da Costa é professor do Departamento de Teoria do Teatro e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. É autor do livro Teatro Contemporâneo no Brasil: criações partilhadas e presença diferida. (Editora 7 Letras/ FAPERJ: 2009)

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