O marinheiro: sonhar é preciso
O Marinheiro, poema dramático de Fernando Pessoa (Lisboa, 1888-1935), foi escrito em 1913/1914 e publicado no ano seguinte. O texto está completando seu centenário.
Numa torre - um espaço fora do tempo histórico - três mulheres atravessam uma madrugada espectral, velando uma morta, envolvidas numa atmosfera de sonho e imaginação. Enquanto esperam o amanhecer, as três veladoras tentam romper o silêncio imposto pela presença da morte, com narrativas de um tempo perdido, imerso na inocência, na beleza e na vivacidade da natureza. A densidade espacial onírica faz lembrar a pintura metafísica e as “personagens”, em atitude hierática, parecem se remeter a uma ancestralidade própria das tragédias clássicas. Elas se perguntam sobre o sentido de suas falas, pensamentos e ações: “me apavora ir, como por uma floresta escura, através do mistério de falar”, diz uma delas. Ao mesmo tempo, temem que a noite chegue ao fim: “com a luz os sonhos adormecem”. Uma delas, tal qual nas lendas antigas, torna-se narradora de um sonho, no qual um marinheiro náufrago, perdido numa ilha deserta, constrói um mundo imaginário, perdendo o contato com a memória de sua vida anterior. As veladoras, impregnadas pela estória do marinheiro e tomadas de espanto, se sentem esvanecer entre imagens do real e da ficção. “Não seria sonho esta coisa vaga a que eu chamo a minha vida?”, diz a narradora que, ante a dissolução da linguagem e da existência, vê a própria fala se dividir entre o som e o sentido, num horror que parece comandado por algo não visível: “Quem é que estou sendo? Quem é que está falando com a minha voz?”. O sonho caminha para um pesadelo, um suspense metafísico que gera o apelo angustiado: “quem poderia gritar para despertarmos?”.
Antes mesmo da criação de seus heterônimos, Fernando Pessoa - ele mesmo - se desdobra nas vozes das três veladoras, em narrativas carregadas de silêncios e irrealidades reiterativas de que “a vida é sonho”. As “personagens” não configuram individualidades dotadas de vontade para impulsionar as ações e seus diálogos não constituem progressão dramática, permanecendo como enunciados de caráter filosófico, por meio dos quais a memória, tempo e imaginação estabelecem densidade poética. O estranhamento das próprias vozes, numa fissura do eu lírico, do mistério de existir e da própria criação artística se faz metalinguagem. Mas, num lance de êxtase, as três falas vão se confundindo numa espécie de uníssono que rememora à força ritualística do coro trágico.
Numa contraposição ao realismo, o modernista Fernando Pessoa, em O Marinheiro, se aproxima do simbolismo, estilo que nos legou a poesia de autores da altitude de Bauldelaire e Malharmé. No Brasil, Cruz e Souza e Alphonsus de Guimarães. Na relação entre poesia e teatro, a maior referência para o contexto de escrita do poema dramático de Pessoa é o belga Maurice Maeterlinck, autor de peças como Os cegos e A Intrusa, que concebeu uma forma denominada “teatro estático”, numa valorização da palavra e de suas sonoridades, sugestivas de sensações e devaneios. O foco na manifestação do inconsciente e na subjetividade radical representaria uma oposição ao teatro naturalista, então em voga, na Europa. Rompendo com convenções da cena, o texto simbolista encontraria eco nas reflexões de Richard Wagner, a propósito do drama musical, e nas propostas cênicas do suíço Adolphe Appia, do inglês Gordon Craig, e nos primórdios das encenações do russo Meyerhold, contrariamente à cenografia realista de Stanislavski, no Teatro de Arte de Moscou. Questões que surgiram no final do século XIX e seriam amplamente experimentadas ao longo do século XX. O simbolismo abrindo o caminho para as vanguardas expressionistas e surrealistas, que iriam povoar o pensamento estético de Antonin Artaud para uma cena que ele vislumbraria, sem alcançar realização concreta.
No âmbito dessas experiências simbolistas, Fernando Pessoa mergulhou no universo mítico, escrevendo além de O marinheiro, outros textos dramáticos: A morte do Príncipe, a partir de Hamlet; Salomé (mito bíblico inscrito numa tradição de reescrituras, dentre elas a peça de Oscar Wilde); Diálogo no Jardim do Palácio (que sugere os diálogos de Platão sobre o amor); e Sakyamuni (que aponta para a figura de Siddhartha Gautama, o Buda). As peças inacabadas integram um conjunto de fragmentos textuais, reunidos na publicação brasileira intitulada Teatro do êxtase, organizada pelo professor da USP, Caio Gagliardi. (São Paulo, Hedra, 2010). De todas as peças, O Marinheiro é a única finalizada. (Há também o poema dramático Fausto, composto em versos, que não integra esta coletânea). Sobre O Marinheiro: afirma Caio Gagliardi: “inclui-se na categoria especial dos textos a que somos compelidos a retornar, com o desejo vão de desvendá-los, mesmo sabendo que sua graça e, quem sabe, seu valor está em justamente não o fazer”. (Revista Pitágoras, 500. 2011: p. 98).
O processo de encenação de O marinheiro partiu da relação com o simbolismo e o “teatro estático”, procurando, no entanto, estabelecer uma perspectiva própria, com questões e meios da cena contemporânea. A pesquisa cênica (elementos visuais, plásticos e sonoros) foi desenvolvida no Laboratório de Artes Cênicas, visando à criação de um ambiente de instalação de artes visuais, que circunda as atrizes. A criação cênica enfatiza o espaço e sugere a adesão do espectador ao acontecimento, no entanto o ritmo, o estranhamento e a densidade mental provocam uma desestabilização do sentido, levando a um turbilhão de indagações e de perplexidades. A limitação das ações dramáticas das veladoras e a ênfase na linguagem poética apresentam-se como um desafio para a interpretação das três atrizes em cena. Exercita-se a atuação centrada numa presença contida, forte e trágica, sustentada por sequências gestuais e vocais e na valorização de aspectos da memória e da subjetividade das atrizes.
Rio de Janeiro, novembro de 2014.
Nanci de Freitas