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Quando não há memória, a liberdade é apenas uma ilusão

 Pedro Henrique Borges.

Falar sobre a encenação de O Marinheiro, de Fernando Pessoa, sobre o período em que estivemos pesquisando, sobre o meu afastamento e retomada do texto, sobre os vídeos que codirigi com a professora Nanci de Freitas, sobre os diversos documentários e trabalhos que fizemos, desde a minha chegada ao Mirateatro, também é falar da minha formação e de meu amadurecimento como artista e como pesquisador. Sinto que a abertura que tive no projeto para me aprofundar e expor foi fundamental para a minha jornada pessoal e profissional.

Tratar e falar de questões tão densas que são trazidas à tona pelo texto de Pessoa foi um processo muito intenso para um estudante tão jovem, mas, apesar de me deparar com questionamentos tão profundos, foi encantador. Desde pequeno, tenho uma ligação com a literatura portuguesa, impossível não me lembrar do meu avô me apresentando esse universo que era tão caro a ele e se tornou tão especial para mim. Tanto que o tema da minha dissertação de mestrado é o texto O Marinheiro, de Fernando Pessoa.

Os percursos que cruzei foram muito plurais, começando com a montagem do espetáculo, no qual participei operando e finalizando o som e criando alguns efeitos sonoros. Também finalizei e editei os vídeos que fizeram parte do espetáculo, numa busca por criar novas imagens que complementavam as cenas. Memórias e sonhos das personagens da peça eram visuais e extrapolavam a palavra, pois, em certos momentos, os vídeos tomavam corpo no espaço e interagiam com elas. Era possível mudar o tom de determinada cena por meio dessa coabitação entre som, imagem e atuação, tudo dentro de um universo onírico fechado numa redoma lindamente composta pelo cenário. Talvez a virtualidade dos vídeos fosse capaz de criar a ilusão de que as veladoras não estavam presas à torre que as cercava. Existia uma contraposição entre os vídeos e o espetáculo: a montagem era obscura, seguia por uma noite até o horror tomar o espaço cênico com os primeiros raios de luz do dia; por outro lado os vídeos eram solares, eles eram a “única janela, alta e estreita, dando para onde só se vê, entre dois montes longínquos, um pequeno espaço de mar”, em que as memórias pouco a pouco se formavam.

Durante três anos estivemos envolvidos com o espetáculo: participamos de festivais, inauguramos o Laboratório de Artes Cênicas - LabCena, ganhamos um edital da FUNARTE e montamos uma temporada belíssima no Teatro Glauce Rocha, ultrapassando os muros da universidade. As memórias desta experiência continuaram conosco, mas nos afastamos delas, pouco a pouco, até nos depararmos com um acervo com muitos registros do espetáculo e vídeos não utilizados em cena, muitos materiais documentados que foram sendo decupados para que voltássemos a contar outras histórias. Depois do espetáculo, retornamos aos registros do processo de encenação e montamos um documentário sobre essa rica experiência, que resultou no mini doc. O Marinheiro: às vezes isso vai buscar sonhos. 

Nanci de Freitas e eu percebemos que ainda havia questões que nos atravessavam e materiais a serem trabalhados. Idealizamos um novo filme que ganhou o nome de O que queremos ser queremos sempre ter sido no passado (uma frase do poema dramático O Marinheiro), em que as três veladoras de Fernando Pessoa aparecem em suas memórias e seus devaneios, em meio à floresta, ao lago, à terra e, fundamentalmente, ligadas ao mar e ao horizonte, numa atmosfera de toda a imensa incerteza, humanidade e solidão. Pensado a partir de fragmentos e arquivos de um processo anterior, resgatamos todo o material bruto das filmagens dos vídeos usados no espetáculo e mergulhamos nas possibilidades de se criar um trabalho autônomo e com vida quando desgarrado de seu uso original. Não filmamos nada novo para este curta, apenas usamos os arquivos que tínhamos guardados: cada cena foi cuidadosamente escolhida, trabalhada e lapidada. Tanto o olhar da câmera de Sara Paulo quanto o nosso olhar (da direção) foram muito sensíveis e reconstruímos imagens da memória das veladoras, quase um mundo paralelo com forte relação com a natureza descrita no texto e uma impensável sensação de liberdade e individualidade. Cada veladora tem um percurso próprio, tem seu próprio elemento da natureza, mas todas seguem para um mesmo lugar, após uma intensa perseguição pelas sombras de suas lembranças. Ao se depararem com o terror e o pesadelo, elas correm e se misturam, de certa forma, e vemos uma única veladora submergir nas ondas e sucumbir.

A riqueza de trabalhos, dias e noites debruçados sobre o texto O Marinheiro e sobre autores que falam sobre ele trouxeram-me para um novo lugar, no qual investigo as memórias dessas veladoras e penso numa poética cinematográfica, a partir delas. Esta é a minha pesquisa no curso de Mestrado do PPGArtes, na UERJ, orientada pela professora Nanci de Freitas, em mais um desdobramento de O Marinheiro na minha vida acadêmica.

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